Todos os homens são livres e iguais em direitos; e todavia, alguns são livres para morrer à fome e iguais para morrer de frio. (António Soveral-1905)
domingo, 8 de março de 2015
A apresentação de José do Carmo Francisco
“O
Exemplo das Árvores”
de
Miguel Gomes Coelho
A
Poesia não é a voz do Mundo. E talvez nunca tenha sido ao longo do
Tempo e da História. Hoje a voz do Mundo é a morte, a escuridão e
o esquecimento. Pelo contrário, a Poesia é feita de luz, de vida e
de memória. Este livro também. Camilo Castelo Branco escreveu um
dia que «A Poesia não tem presente; ou é sonho ou saudade». E vem
a propósito lembrar o grande mestre da Literatura Portuguesa nascido
em Lisboa na Rua da Rosa em 1825. Se fosse vivo ele comentaria este
segundo livro deste autor com uma palavra muito do seu agrado – a
palavra cometer. Ora o autor deste livro «cometeu» em 1978 outro
livro com o título de «De coração na mão». Ou seja – a
Natureza e a Cultura lado a lado, tal acontece como no título deste
livro hoje em apreço – «O exemplo das árvores». Na verdade são
seis os capítulos deste livro de poemas mas, como acontece nos
livros de contos, o autor escolheu um dele para título do conjunto.
Neste caso é «O exemplo das árvores» que ocupa as páginas 11 até
18. Vejamos o poema inicial do capítulo: «Seja qual for o destino /
do voo das tuas mãos / lembra-te / e pensa maduramente / no exemplo
da árvores». Este advérbio de modo («maduramente») surge aqui
como valor enfático de uma reflexão. Ao longo dos séculos a Poesia
nunca hesitou em chamar as coisas pelos seus nomes mas tem oscilado
sempre entre a canção e a reflexão. Neste primeiro capítulo é a
reflexão que conta como por exemplo no poema da página 16: «Não
li uma linha / nem escrevi uma frase / mas tive um poema nos meus
braços / e declamei-o com toda a força do meu silêncio / não
fosse alguém quebrar-me o encantamento». Já em «Mar final» a
força está na reflexão sobre a viagem que é uma projecção da
vida. Começa na página 21 («Porque sempre se cantam as mães
/cantemos também a morte / que é a mãe do nada»), percorre a
página 23 («Apenas deixarei ficar / um último aceno / ninguém
mais se recordará desta barca / ou deste mareante») e conclui na
página 25: «Depois lancem as cinzas ao vento / e nele escrevam o
epitáfio. / Realiza-se assim o sonho seminal da morte / Nasce a
memória, talvez a saudade». A ligação entre esquecimento e morte
confirma-se na página 28: «Neste tempo que se liquefaz / e corre
célere num túnel de nevoeiro / o único destino é o esquecimento.»
O terceiro capítulo é «Com as mãos cheias de gente» permitindo
que o poema faça perguntas em voz alta e no colectivo: «De que
serviu, então, o passado? De que serviu ter as mãos cheias de gente
/ e o coração do tamanho do mundo? / De que serviu a promessa
jurada de um futuro / inteiro e limpo de braços encadeados / numa
marcha segura / o horizonte como destino / olhando em frente?»
Noutro poema se escreve o Natal de modo diferente: «É noite e as
estrelas estão lá em cima. / Uma criança nasce com a morte já
estampada nas faces (…) É assim o Natal no Darfour / e as mesmas
estrelas estão lá em cima». Por isso se pensa em Deus pela
negativa: «Se Deus existisse / as pedras lançadas em seu nome /
transformar-se-iam em água / saravam feridas, purificavam actos; /
mas Deus, se existiu, morreu / e não deixou testamento / nem
descendência». Em «Transparências» os poemas são breves entre
dois e cinco versos, concentrando a canção e a reflexão na mesma
temperatura como na página 52: «Nunca abras um espelho / nunca
queiras ver o que lhe ficou gravado na memória». O capítulo
«Diapositivos» reflecte no seu conjunto de seis andamentos poéticos
uma ideia ancorada no título do livro: A Natureza fornece a imagem,a
Cultura faz a sua apropriação por escrito e por extenso. A Poesia é
um vulcão que ainda não está extinto porque como na página 61 «De
uma furna onde / ainda esvoaçam emoções / renasce um tardio rio de
lava; / um espanto no entardecer / em que o sol se demora um pouco
mais / no aguardar da noite certa». Por fim em «Oldenburg» o livro
é uma linha paralela entre em dois poemas – «Nocturno» e
«Encontro em Oldenburg». A base é uma promessa («Disseste que me
ias trazer mais vida») e o ponto de chegada é um balanço. Dito de
outra maneira, trata-se aqui de um inventário qualificado. O poem
avisa o destinatário - «Quero ensinar-te tudo o que aprendi e / o
que descobri no vogar dos dias» - e mesmo na adversativa para o
destinatário- «Vais saber que as lágrimas / não caem só dos
olhos» - e também para o autor - «Andar pela vida não é fácil»
- o ponto a atingir fica dentro do enunciado do possível: «saber
que os homens podem ser / como as árvores». «O exemplo das
árvores» que dá título ao presente livro de poemas é o modelo
(breve embora) de tudo o que permanece apesar do desgaste e da
erosão. Porque as árvores dão aos homens o exemplo vivo e concreto
da ligação à terra e ao seu calendário de sementeira trabalhosa e
de colheita festiva. Os parvalhões que gritam ao telemóvel o brutal
e imperativo «Tázadonde?» nos bancos do autocarro, do eléctrico,
do elevador ou do Metro, são a voz do Mundo que fala alto e atropela
mas não são a voz da Poesia. Nem nunca serão eles, os que falam
alto, essa voz porque o seu som gritado se vai perder muito depressa
nas valetas do esquecimento enquanto a Poesia tem e terá sempre os
seus leitores, teimosos e heróicos, capazes de a invocar seja no
bulício da rua seja no silêncio dos corações. (Edição: Fólio
Exemplar, Capa e Paginação: Ana Nunes) --
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por José
do Carmo Francisco
às 13:49
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015
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