segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Clube dos "Desassossegados" - contribuição IV


Na data dos 74 anos da morte do poeta :

“Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiram do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram namorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa; passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrá-mo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas : navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuído-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos própriamente vida. Não temos uma ideia de futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.
Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conhecimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da cousa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em que(m) não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar, quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e de asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas temo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não agir.

(Um dos textos considerados introdutórios do Diário de Fernando Pessoa-ele próprio para o Livro do Desassossego)

8 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Excelente, Miguel! Um contributo deveras significativo, a ler e reler... Há aqui certas passagens de uma riqueza incomensurável.

Deixo os meus votos de início de uma boa semana :)

P. S. - Pedindo desculpa pelo atraso, queria também dizer que já respondi ao seu simpático desafio. Foi um prazer.

Benjamina disse...

Tão actual esta descrição de uns e outros,infelizmente.....
Concordo com a Ana Paula: excelente texto e excelente escolha.
Um abraço

Miguel Gomes Coelho disse...

Ana Paula,
Obrigado pelo comentário.
A "brincadeira" do Clube deu aso a releituras e redescobertas interessantes. Tem sido muito bom.
Ainda bem qe teve gosto em responder ao desafio. São pequenos jogos que por vezes, parece que brincando, nos obrigam a pensar sobre nós.
Um abraço.

Maria Josefa Paias disse...

Miguel,
Muito obrigada pela escolha deste texto como homenagem ao Poeta neste dia e como contributo para o nosso Clube.

A Ana Paula ainda não fez nada. Não sei se temos que fazer "uma reunião" para avaliar o caso.:))

Um grande abraço.

Miguel Gomes Coelho disse...

Maria Josefa,
ainda bem que gostou.
Fico satisfeito por isso.
Quanto à Ana Paula, acho que deverá ser chamada "à pedra" e ser-lhe aplicado o "devido correctivo"...:-)))
Um abraço.

Ana Paula Sena disse...

Ai, ai, estou de castigo!! :)))

Eu sei, eu sei, mas acreditem, já tenho o pequeno texto que escolhi para ser o meu primeiro contributo. Será precisamente a minha próxima publicação.

Abraços a todos vós.

Patriota disse...

Descobri este esplêndido blog através de outro blog ("catharsis").
Ainda descubro, passo a passo, novos fragmentos "pessoanos". Ele, Pessoa, sempre eterno, o poeta de todas as gerações. =)

Termino com duas citações do poeta, que retirei deste texto(espero que me desculpem esta decisão deliberada de copiar algo do vosso blog sem a devida permissão), já que considero genial (como aliás todos os textos de Pessoa o são):

"Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver." e "Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas : navegar é preciso, viver não é preciso."

Gostei bastante de aqui entrar! =)

Miguel Gomes Coelho disse...

Daniel,
obrigado pela visita e pelo juizo de valor, mais a mais vindo do "Catharsis".
Tentarei de seguida ir ao seu blog para também conhecer melhor quem me escreveu.
Saudações.

A Hora da Poesia- Rádio Vizela

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